O que existe é a ideologia da ignorância: um projeto para descreditar o conhecimento científico, inviabilizar o funcionamento das universidades federais, e achacar o professor/pesquisador. Cursei graduação, mestrado e doutorado em universidade federal. Há dez anos sou professora em universidade federal. Nunca vi uma bunda de fora. Nunca vi um banheiro unissex. Nunca vi um centavo do dinheiro público para minha pesquisa na área de Administração (fora as bolsas de mestrado e doutorado que recebi da Capes e do CNPq há mais de uma década). O que vejo são professores e pesquisadores exaustos, endividados, mal pagos, mal dormidos, desmotivados, até ridicularizados, mas que, mesmo assim, cumprem seu dever de profissionalizar jovens, de construir conhecimento e de estimular a comunidade. Uns mais, outros menos, é verdade.
Eu tenho sido dos que mais. Eu tenho sido dos que vão a campo sem equipamento. Vão ao banheiro sem papel higiênico. Vão à lousa sem giz. Vão à sala de aula sem luz. Vão ao trabalho sem reconhecimento. Tenho sido. Não sei até quando aguentarei continuar sendo.
Hoje recebemos a notícia de mais um corte orçamentário. O governo atual, talvez num golpe final contra a educação, bloqueou R$ 328,5 milhões do orçamento das universidades federais, que já vem diminuindo ano após ano. Esse valor, se somado ao montante que já havia sido bloqueado ao longo do ano, perfaz um total de R$ 763 milhões retirados das universidades federais em 2022. Essa é a ideologia da ignorância, a cultura do negacionismo, o projeto de retrocesso civilizatório.
Outro dia, escutei de uma conhecida: “eu não busco informação com pesquisador científico, eu busco com advogado, com médico, com engenheiro”. Quem ela acha que constrói o conhecimento aplicado pelo advogado, pelo médico e pelo engenheiro? Somos nós, nas universidades federais, fazendo pesquisa sem dinheiro, sem papel higiênico, sem giz, sem luz. Mas também sem a balbúrdia, sem a bunda de fora, e sem a famigerada “ideologia de gênero”.
Por que não existe “ideologia de gênero”? Porque a palavra “ideologia”, utilizada dessa forma, significa doutrina. Nenhum pesquisador de gênero (e olha que conheço muitos) está tentando doutrinar ninguém a mudar de gênero, ou a assumir o gênero A, B ou C. Pesquisadores de gênero estão tentando entender e respeitar a pluralidade humana e, por meio da construção de conhecimento, garantir a liberdade para que as pessoas sejam quem são. Se existe alguma doutrina relacionada a gênero, é aquela que estabelece que meninas usem rosa e meninos usem azul. Mamilos femininos são indecentes, e mamilos masculinos são aceitáveis. Pelos femininos devem ser extirpados (dolorosamente, diga-se de passagem), e pelos masculinos sinalizam virilidade. E assim por diante. Isso é doutrina, isso é opressão, isso é desigualdade.
Como evidência de que nós, pesquisadores científicos e professores de universidades federais, não paramos mesmo diante da violência simbólica e física que o presente governo nos impingiu, registro aqui um esforço coletivo do qual tive a honra de participar. Em meio a todo o terror da pandemia, um grupo diverso, formado por pesquisadores de diferentes nacionalidades, etnias, religiões, orientações sexuais, identidades de gênero e níveis de senioridade acadêmica, se reuniu para propor formas de achatar hierarquias de conhecimento, especialmente aquelas que obscurecem a sexualidade humana. Isto é, aquelas que induzem preconceitos ou noções propositalmente errôneas sobre sexo e gênero. Isto é, hierarquias de conhecimento que criam termos perigosamente enganosos como “ideologia de gênero”.
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